O RAP NACIONAL influenciou a estrutura musical e social do Brasil

Por Vinicius Colares

estética e o conteúdo de toda grande obra depende diretamente do seu meio. Salvando raríssimas exceções é o cotidiano que faz o artista. É um lugar comum que uma maioria esquece de adotar na avaliação de qualquer produto relacionado a expressão artística urbana.

O Brasil não é país para iniciantes. Defender o rap sempre foi correr na contramão. Mas é necessário fazê-lo — mesmo assistindo uma fatia considerável do país protestando contra violência enquanto repreende quem tenta mostrar a sua própria leitura do que ela é.

Dê um grito quem nunca ouviu a história de que o “rap é música de bandido”. Uma breve história do movimento pode ajudar a entender como isso surgiu.

I. Perseguido eu já nasci, demorô

O rap nasceu na rua e cresceu na rua.

Todos os grande nomes do hip hop apontam São Paulo como a cidade-sede do movimento. O ano não é exato, mas o espaço temporal é a década de 1980. “Funk falado” era um dos nomes dado ao rap antes da sua popularização entre os próprios integrantes do movimento hip hop que faziam parte da cena paulista — uma maioria formada por b-boys que procuravam um espaço para dançar.

Galeria 24 de maio, estação São Bento e Praça Roosevelt foram os primeiros pontos de encontro e (tentativa) de expressão de todos os interessados pelo rap.

A expansão, porém, não traz só bons frutos — principalmente para um movimento que precisa ocupar espaços. E é regra de qualquer sistema opressor: só é possível calar quem faz barulho. E com o rap conquistando um público e formando sua própria identidade nacional (graças a nomes como DJ Hum e Thaíde), os DJ’s, b-boys e amantes do movimento passavam a sofrer com o preconceito em novas proporções.

 1*DgJIs7I5gsEY4bzlyg6AhA

II. Suspeitos profissionais

A repressão não era exatamente uma novidade para quem fazia a correria nesses espaços. Mas raspar o cabelo (ou deixar crescer o black power), usar boné e calça larga passou a transformar qualquer um em suspeito profissional.

Entre as tantas histórias que influenciaram o início do rap no Brasil (o bom público no show do Public Enemy em 1984 e o considerável sucesso de Pepeu, por exemplo), a influência definitiva veio do disco Hip-Hop Cultura de Rua.

Essa coletânea lançada em 1988 foi uma produção de Nasi e André Jung — integrantes do Ira!. Thaíde, MC Jack e DJ Hum foram alguns dos nomes lançados nesse álbum que marcou a geração que crescia no meio do movimento hip hop. Usando bases de sucessos norte-americanos na criação das batidas, as músicas apresentavam o rap para o grande público de forma definitiva.

O gênero foi disseminado rapidamente pelas periferias paulistas e a troca de influência foi natural: a música recebeu uma carga de realidade e o cotidiano foi influenciada pelo rap.

Consciência Black vol. 1 foi o segundo grande álbum da história do rap nacional. Essa coletânea mudou a imagem e a posição do rap no país. Duas das oito canções do disco são Tempos Difíceis e Pânico na Zona Sul. Quem assinava as músicas eram, respectivamente, Edi Rock e um grupo chamado Racionais MC’s.

https://www.youtube.com/watch?v=U33Jcfzp-E0

III. A maioria aqui se parece comigo

Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e DJ KL Jay. O resultado dessa soma é uma revisão (não-intencional) da forma como o rap era feito até o momento. O que o Racionais MC’s fez é, de fato, um espelho do cotidiano de uma maioria.

Ninguém havia tocado o dedo na ferida da forma como foi feito. Não havia crítica relacionada ao racismo e miséria como aconteceu em Holocausto Urbano. Não havia nenhuma imagem tão visual da infância/juventude pobre em São Paulo como em Raio X do Brasil.

Foram as canções Fim de Semana no Parque e Homem na Estrada que elevaram o grupo ao reconhecimento em âmbito nacional.

O que veio depois disso, através do Racionais, é grande demais para um único texto. Em 1997 surgiu uma das obras definitivas da história do rap nacional: Sobrevivendo no Inferno. O disco vendeu aproximadamente 500 mil cópias — graças a clássicos como Fórmula Mágica da PazCapítulo 4, Versículo 3 e Diário de um Detento.

Quem ainda não conhece essa última, ouça agora. Não há tópico mais atual. Esse é um dos melhores relatos de conhecimento público sobre o Massacre do Carandiru. O peso na voz de Mano Brown narra no tom certo o que foi um dos maiores absurdos cometidos por autoridades no sistema prisional brasileiro.

Dois ladrões considerados passaram a discutir.

Mas não imaginavam o que estaria por vir.

[…]

Era a brecha que o sistema queria.

Avise o IML, chegou o grande dia.

Depende do sim ou não de um só homem.

Que prefere ser neutro pelo telefone.

Ratatatá, caviar e champanhe.

Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!

IV. “Até no lixão nasce flor”

A importância de grupos como o Racionais MC’s não é mensurável. O número de jovens vindos de realidades marginais que tiveram suas vidas influenciadas pelo rap não pode ser comparado com a influência de outros gêneros musicais.

Isso não é diminuir as composições com caráter político de 1960, o Tropicalismo no fim dos 60’s e início dos 70’s ou a força do rock nacional de 1980. Mas, diretamente, nenhum desses movimentos fez o que o rap fez.

Foi o rap que deu voz para comunidades periféricas que não eram sequer consideradas até ali; foi também o rap que injetou autoestima em milhares de jovens pobres que não tinham nenhum tipo de representação ou espelho.

A influência do rap é definitiva. Embora ele não influencie todos da mesma forma (o que é ótimo), a força é brutal. Gostaria de conseguir imaginar quantos jovens negros de periferia encontraram identificação e paz de espírito ouvindo Mágico de Oz do Racionais ou No Brooklin de Sabotage.

O rap é o retrato fiel do verdadeiro cotidiano brasileiro.

Avatar