[LM] A Escravidão Moderna – Elis Tavares

Escravidão Moderna - Elis Tavares Literatura Marginal

Escravidão Moderna - Elis Tavares Literatura Marginal

A ESCRAVIDÃO MODERNA

Jaulas, prisões, cavernas compradas… Ao contrário dos escravos antigos e prisioneiros, o escravo atual deve pagar pela sua jaula. Quanto mais acumula mercadorias, mais ele se afasta de ser feliz.

 “Que aproveita o homem ganhar o mundo inteiro e perder sua alma” –  Marcos 8:36hs.

No sistema dominante não é a demanda que determina a oferta, mas a oferta que determina a demanda. Assim surgem novas necessidades que são consideradas como vitais para a maioria da população. Primeiro foi o rádio, depois o carro, a televisão, o computador e agora o telefone celular modificam profundamente as relações humanas. Servem por um lado para isolar os homens um pouco mais dos seus semelhantes e por outro lado a difundir as mensagens dominantes do sistema.

As pessoas se veem obrigadas a engolir rápido o que a indústria agroquímica produz, alimentos que são não mais que organismos geneticamente modificados, uma mistura de corantes e conservantes, de pesticidas, de hormônios e de outras tantas invenções da modernidade.  O prazer imediato é a regra geral de todas as formas de consumo. E num sistema que promove a desigualdade como critério de progresso, mesmo se a produção agroquímica é suficiente para alimentar a totalidade da população mundial, a fome nunca deverá desaparecer. A outra consequência da falsa abundancia alimentícia é a generalização das usinas de concentração e de extermínio massiva e bárbara das espécies que servem de alimento aos escravos.

Para deixar livre curso ao capitalismo selvagem, o crescimento econômico nunca deve parar. É preciso produzir, produzir, produzir. Continuam poluindo sem cessar, nosso meio ambiente e nosso espírito. Nunca propõem uma mudança radical no sistema de produção. Para entrar na ronda do consumo frenético é preciso ter dinheiro, e para isso é preciso trabalhar, ou seja, vender-se.  O sistema dominante fez do trabalho seu principal valor. E os escravos devem trabalhar mais e mais para pagar a crédito sua vida miserável. A invenção do desemprego moderno tem como objetivo assustá-los. Cada gesto dos escravos é calculado afim de aumentar a produtividade. O papel do trabalhador se confunde com o da máquina nas usinas, com o do computador nas oficinas. Em nenhum momento do cotidiano ele foge da influência do sistema. É um escravo em tempo integral…

A origem dos males do escravo moderno está na degradação generalizada de seu ambiente, do ar que ele respira e da comida que ele consome, o stress provocado pelas suas condições de trabalho e pelo conjunto de sua vida social. É a base de cirurgias, de antibióticos ou de quimioterapia que se trata os pacientes da medicina mercantil. Nunca se ataca a origem do mal, senão as suas consequências, pelo motivo de que esta busca da origem do mal nos conduziria inevitavelmente à condenação fatal da organização social em toda a sua totalidade. O sistema atual fez do nosso corpo uma mercadoria, um objeto de estudos e de experiência da medicina mercantil e para a biologia molecular. Os donos do mundo já estão prontos para patentear os seres vivos. De tanto obedecer, adquirimos reflexo de submissão. A obediência se tornou nossa segunda natureza. Obedecer, produzir e consumir. Obedecem-se aos pais, aos comércios, às leis, as forças de ordem e a todos os tipos de poderes, pois não sabemos fazer outra coisa. Não existe algo que nos dê mais medo do que a desobediência, já que desobedecer, aventurar, mudar é muito arriscado.

O escravo moderno se sente perdido sem o poder que o criou. Então ele continua obedecendo. É o medo que nos fez escravos e que nos mantêm nessa condição. Baixando a cabeça para os donos do mundo, aceitamos esta vida de humilhação e de miséria somente por medo. No entanto, dispomos da força numérica frente a esta minoria que governa. A força deles não sai de seus policiais, mas de nosso consentimento. Quando se trata de conservar a sua hegemonia, o poder não hesita em se servir de violência. Todo ato de rebelião ou de resistência está de fato assimilada a uma atividade desviada ou terrorista. A oposição real ao sistema dominante é totalmente clandestina. Para estes opositores, a repressão é a regra de uso. E o silêncio frente a essa repressão…

“O que outrora se fazia por amor a Deus, hoje se faz por amor ao dinheiro” – Nietzsche

Este novo deus que ele entregou a sua alma não é mais do que um pedaço de papel, um número que apenas tem sentido porque todo mundo decidiu dar-lhe. É em nome desse deus que ele estuda, que ele trabalha, que ele luta e se vende. E é em nome desse deus que abandonou seus valores e está disposto a fazer qualquer coisa.

A força da dominação presente é entreter a ilusão desse sistema que colonizou toda a face da Terra é o fim da história. Convenceu a classe dominada que adaptar-se a sua ideologia é como adaptar-se ao mundo tal qual se mostra e como sempre foi. Sonhar com outro mundo se tornou um crime criticado unanimemente pelos meios de comunicação e os poderes. O sistema atual coloniza a consciência dos escravos, por isso as forças de repressão são precedidas pela dissuasão, que desde a infância, realiza sua obra de formação de escravos. Os escravos enganam sua insatisfação permanente com o reflexo manipulado de uma vida sonhada, feita de dinheiro, glória e aventura. Mas seus sonhos são tão lamentáveis como sua vida miserável. As imagens que vemos levam consigo a mensagem ideológica da sociedade moderna e serve de instrumento de unificação e de propaganda.

A criança é a primeira vítima dessas imagens, pois se trata de sufocar a liberdade desde o berço. É necessário torná-los estúpidos e tirar-lhes toda capacidade de reflexão e de crítica. Tudo isso se faz com a cumplicidade dos pais que não buscam se quer resistir frente à força dos modernos meios de comunicação. Eles mesmos compram todas as mercadorias necessárias para aprisionar suas crias. Deixam que o sistema alienador e medíocre se encarregue da educação dos seus filhos. Recorrem-se aos instintos mais baixos para vender qualquer mercadoria. E é a mulher duplamente escrava da sociedade atual que paga o preço mais alto. Ela é apresentada como simples objeto de consumo…

A imagem ainda é a forma de comunicação mais direta e mais eficaz: ela cria modelos, aliena massas, mente e promove frustrações. Vender é o único que importa. Perdem tempo com estúpidos que lhes fazem rir e cantar, sonhar ou chorar. Assim como Roma, hoje em dia é com diversões e consumo do vazio que se compra o silêncio dos escravos. Sendo o detentor de todos os meios de comunicação, o poder difusa a ideologia mercantil através da definição petrificada, parcial e falsa que ele dá das palavras. É uma linguagem da aceitação passiva das coisas tais como são e tais quais devem permanecer. A linguagem é o coração dessa dominação de submissão do sistema mercantil totalitário.

Para que mudança radical surja é preciso uma tomada radical da linguagem e também da comunicação real entre as pessoas. É nisto que o projeto revolucionário se une ao projeto poético. A espontaneidade criadora se apodera de cada um e nos reúne a todos. No entanto os escravos modernos se vêm como cidadãos. Eles acreditam que votam livremente e que decidem quem vai dirigir seus negócios. Não existe oposição nos partidos políticos, pois eles estão de acordo com o essencial que é a conservação da atual sociedade mercantil. Discutem por pequenos detalhes esperando que tudo fique como está. Estas briguinhas são difundidas para ocultar o verdadeiro debate sobre a escolha da sociedade na qual desejamos viver. Tudo isso não se parece nem de perto, nem de longe uma democracia. A democracia real se define primeiro e antes de tudo pela participação massiva dos cidadãos na gestão dos interesses da cidade. Ela é direta e participativa. Essa democracia que temos limita ao cidadão o direito ao voto, ou seja, nada tão real. As cadeiras do parlamento estão ocupadas pela imensa maioria da classe econômica dominante, seja ela de direita ou da pretendida esquerda social-democrata.

O poder não é para ser conquistado, é para ser destruído. O poder é tirano por natureza, seja ele exercido por um rei, um ditador ou presidente eleito. A única diferença na democracia parlamentar é que os escravos têm a ilusão de que podem escolher eles mesmos o mestre que eles deverão servir. Eles não são escravos porque existem senhores, mas porque decidiram permanecer na condição de escravos.

O sistema dominante se define então pela onipresença de sua ideologia mercante. Ela ocupa ao mesmo tempo, todo o espaço e todos os setores da vida. Ela não diz nada mais que: produza, venda, consuma, acumula! Ela reduziu todas as relações humanas em relações mercantes e considera nosso planeta como simples mercadoria. O único direito que ela reconhece é o direito da propriedade privada. A onipresença da ideologia, o culto ao dinheiro, monopólio da aparência, repressão sob todas as formas, vontade de transformar o homem e o mundo. Eis a democracia liberal, mas que tem o verdadeiro nome de sistema mercantil totalitário.

A destruição da sociedade mercantil totalitária não é um caso de opinião. É uma necessidade absoluta num mundo que já está condenado. Pois o poder está em todos os lados, deve ser por todas as partes e todo o tempo que devemos combatê-lo. A reinvenção da linguagem, o transtorno permanente da vida cotidiana, a desobediência civil pacífica e a resistência são as palavras mágicas da revolta contra a ordem estabelecida. Mas para que esta revolução surja é preciso reunir as subjetividades em uma frente comum. É na unidade de todas as forças revolucionárias          que devemos trabalhar. Isso só se pode conseguir quando temos consciência de nossos fracassos passados: nem o reformismo estéril, nem a burocracia totalitária não podem ser uma solução para nossa insatisfação. Trata-se de inventar novas formas de organização e de luta para sairmos da condição de escravos que nós mesmos nos impomos.

Avatar

Leave a reply