ESPECIAL: O mercado fonográfico do RAP no Brasil
Por Nina Fideles *
A opção de um artista atuar com uma gravadora, pelo menos no cenário do Rap Nacional, ainda gera polêmicas e, para muitos, remete a uma condição de submissão do trabalho artístico ao empresário, uma relação de patrão e funcionário, e uma lógica meramente capitalista. Porém, desde o início do movimento Hip Hop no Brasil, empresários ou até mesmo rappers e simpatizantes da cultura, investiram e investem em selos e produtoras para organizar e profissionalizar o trabalho, além de lançar novos nomes no mercado. Independente da opinião de cada um, e também da lógica que cada gravadora ou produtora atue, estas empresas tem se tornado muito mais presentes no cotidiano do rap. Sejam elas de empresários, ou dos próprios rappers.
No final dos anos 80, com o início do movimento Hip Hop no Brasil, já havia gravadoras atuando junto com os selos independentes. Em São Paulo, as primeiras coletâneas foram lançadas por empresas que organizavam bailes blacks na cidade, como a Kaskatas (Ousadia do Rap), Chic Show (O Som das Ruas) e Fat Records (Situation Rap). A Eldorado, em 1988, lançava a Hip Hop Cultura de Rua, que apresentou artistas como Thaide e DJ Hum e MC Jack. Nos primeiros anos da década de 90, selos como a TNT estreavam com o disco de Thaíde e DJ Hum, Baseado nas Ruas (DF), Duck Jam e Nação Hip Hop, e muitos outros que viriam depois. Em Brasília surgia a Discovery, que trabalhava grupos como Cirurgia Moral, Câmbio Negro, Código Penal. Racionais MCs chegaram com o Holocausto Urbano, pela Zimbabwe Records. E ao longo dos anos muitas surgiram. Porte Ilegal, Cosa Nostra, Zambia, Five Special, Face da Morte Produções, Trama, Discool Box, RDS Records, Sky Blue, Só Balanço, 4P, 7Taças, Raízes Discos… Citar todas que em algum momento lançaram grupos e distribuíram produtos, é tarefa impossível. Assim como seria impossível citar todas que estão na ativa atualmente.
Talvez a busca por profissionalização e uma visão mais mercadológica que envolve o Rap Nacional hoje, fizeram com que novas produtoras, gravadoras e investimentos surgissem. A ideia de que a população da periferia, com o acesso à crédito e com as novas oportunidades geradas ao longo dos últimos anos, fosse uma grande parcela da população que passou a consumir bastante, também fizeram com que a grande mídia buscasse, ainda mais, representantes desta cultura em suas programações. E o interesse pela cultura da periferia só tem aumentado.
Representantes legítimos da cultura Hip Hop tem sido ‘agenciados’ por nomes como Bagua, Boogie Naipe, 1daSul, Marola Discos, Boia Fria… Mas não quer dizer que esteja mais fácil. Lidar com trabalhos já consolidados, lançar novos nomes, criar ou não uma relação com a grande mídia, romper preconceitos, são alguns dos desafios de quem hoje se propõe a trabalhar como gravadora no Rap Nacional.
Representatividade
A Bagua surgiu há quatro anos tendo o rapper Edi Rock como carro chefe. O que era para ser coisa de dois a três artistas, hoje conta com um amplo casting, que, além de Edi Rock, traz Gregory, Crônica Mendes, Don Pixote, DBS, Luiza Chao, All Star, Terra Preta, Realidade Cruel, Calado, Helião, Ice Blue, DJ Cia, DJ Kefing, Ndee Naldinho e Tulio Dek.
A ideia de montar uma gravadora, segundo o presidente Jairo de Andrade Netto, 31 anos, é mudar a forma de gravadora tradicional, romper os estigmas e adotar uma postura diferenciada de trabalho, além, é claro, de trabalhar grandes nomes do Rap Nacional. Mas não só isso. A Bagua é guiada por sonhos e ideais de Jairo, que desde menino pegava pesado na fazenda do avô, no Pará, que era o que mais trabalhava, justamente para servir de exemplo. Viveu periferia. Pois como ele mesmo afirma, o Brasil é uma grande periferia, ainda mais considerando cidades pequenas e remotas do Pará. “Quer lugar mais periferia que os lugares que eu vivi? Periferia não significa só a favela, aqui em São Paulo ou Rio de Janeiro. Vivo periferia desde que nasci”. Depois de conhecer a música “Fim de semana no parque” nunca deixou de ouvir rap. “O mais louco é você viver o rap em ambientes que não são do rap, e eu praticamente tive que viver a minha vida em ambientes que não são do rap”, declara.
O significado de Bagua é um ser que não aceita dominação. “Na fazenda onde fui criado, é o boi bravo. Não adianta querer pegar, ele vai enfezar, te derrubar, te machucar. Na verdade o rap é um monte de Bagua junto. Quem sou eu para querer mandar, desmandar na vida e trabalho de alguém. A gente trabalha junto”, conta Jairo. Para ele, tudo isso só é possível porque existiram várias pessoas que há mais de vinte anos, em outro mercado, outro mundo, trabalharam e movimentaram o rap nacional. “Eu acredito que a raiz do rap sempre foi e sempre tem que ser política. O rap é uma música para poder combater. Essa é a missão do rap, só que não precisa ficar preso exclusivamente nisso”.
Na hora de escolher os artistas do casting, Jairo não pode seguir apenas seu gosto pessoal, senão, segundo ele, trabalharia uma linha só. “No rap existem várias vertentes. Existe um rap da geração nova que não cresceu escutando Racionais, RZO, Ndee Naldinho, Thaíde. Quando criei a Bagua, pensei em ter um pouco da cada estilo. E cada artista tem um momento. Julgar à distância, por uma letra, é muito fácil. Todo mundo quer colocar só os defeitos, mas ninguém quer pagar conta de nenhum artista. Todos eles tem contas, são seres humanos, tem alegria, tristeza, felicidades”.
Já a Boogie Naipe foi pensada inicialmente para trabalhar apenas a carreira e a marca Mano Brown, mas enquanto preparava os trâmites burocráticos, foi convidada para administrar todo o trabalho dos Racionais MC’s. Eliane Dias, advogada e produtora da Boogie Naipe, nome que dará título ao CD solo de Brown, conta que desde outubro de 2012 vem atuando com as redes sociais e a partir de março de 2013 passou a estruturar a parte física, a logística do grupo. “Quando começamos, me surpreendi ao perceber que eles ficaram 25 anos atuando de forma tão tranquila. Não achei que isso fosse possível. É um grande desafio que temos. Não posso cometer falhas”, conta Eliane. Antes de pensar em lançar novos nomes, ela quer mais um ano para deixar tudo organizado com os Racionais. “A Boogie Naipe quer encontrar artistas prontos, que sabem o que estão fazendo e tenham um mínimo de estrutura. A busca por reconhecimento artístico é muito difícil e o jovem da periferia, quando se torna cantor de rap, ganha esperança, cria novas possibilidades, e abraça as oportunidades que o rap dá”. Eliane tem um desafio a mais, mas que segundo ela, tem sido superado há mais de vinte anos: o de ser vista apenas como mulher do Mano Brown. “Ele tem uma carreira, eu tenho outra. Cada um com seu jeito particular de ser. Não somos uma coisa só. Já passei por vários ambientes, diversas situações”.
Outras experiências mais antigas de gravadoras como 1daSul e Marola Discos permanecem na ativa e sobreviveram às mudanças do mercado fonográfico. Máximo José, conhecido como Marola, tem uma loja em Brasília desde 2004, e é DJ do grupo Voz Sem Medo. A história de gravadora e distribuidora começou quando ele distribuía vinis e lançou o disco de efeitos Arsenal Sônico, do DJ Tydoz, TDZ, que chegou até o volume seis. “Eu vinha com a cara e a coragem para São Paulo distribuir vinis e CDs de artistas do DF. Em Brasília tinha a CD Box e a Discovery, mas o Voz Sem Medo decidiu lançar independente”, diz Marola. Depois disso, grupos como Provérbio X, Cirurgia Moral, Vadios Loucos, Relato Bíblico, Atitude Feminina, Eclesiastes e Filosofia de Rua já foram lançados por ele. São 35 títulos no total.
A 1daSul surgiu paralela à marca de roupas homônima, do escritor e empresário Ferréz. Localizada no Capão Redondo, os primeiro lançamentos foram a coletânea “Us qui são representa” e o DVD da já tradicional festa na Zona Sul, o 100% Favela. Ferréz acredita que o cenário hoje está mais complicado pelo fato de não haver autogestão e uma administração eficiente. “Faltou os grupos trabalharem as carreiras. Hoje o cenário é caótico, mas não deixa de ser um fato o Rap Nacional ser um braço muito importante e útil para o avanço do crescimento das periferias. Temos dezenas de novos nomes que vieram trabalhando de forma diferenciada e provaram que novos tempos pedem novos meios de trabalho”, afirma. A 1daSul lançou Negredo, R.D.G, Detentos do Rap e são proprietários de dezenas de masters, entre elas Nill, RPW e Facção Central.
A rota do Rap no Brasil ficou por muito tempo entre São Paulo e Brasília. Mesmo que o eixo RJ-SP tenha as mais diversas oportunidades comerciais e midiáticas. Para Don, presidente da Corleone Records, do estado do Rio de Janeiro, as diferenças culturais existem, mas o corre é o mesmo. “São Paulo é de fato o berço do Rap Nacional, mas há algum tempo o surgimento de grandes nomes no cenário do Rio vem quebrando essa barreira. A principal diferença entre os dois mercados é o tamanho. O público é bem maior em São Paulo, consequentemente o mercado é maior”.
A Corleone Records tem dois anos de existência e teve seu pontapé inicial junto com dois integrantes do grupo Cone Crew na capital carioca e hoje se encontra em Rio das Ostras (RJ). Lançaram neste ano o primeiro EP da gravadora, intitulado Corleone Records e o Time dos Monstros, com produção de Devastoprod. Para Don o maior desafio da gravadora é manter a união da equipe. “Trabalhar com música e pessoas nem sempre é fácil. Ideologias, ideias, ideais e sonhos são compartilhados e confrontados constantemente, e, às vezes esse choque de diferenças torna-se inevitável. Alguns aprendem com isso, outros simplesmente ignoram os fatos. Pessoas são assim, temos que entendê-las”, afirma.
O fácil acesso à internet, novas ferramentas de divulgação e uma nova forma de trabalhar da nova geração, mudou a relação do público com a música. Enquanto os downloads subiam, as vendas de CDs caiam. E mesmo assim, muitos grupos
ainda não dispensaram a produção de CD em acrílico ou outro tipo de material. E existe grande parcela do público que faz questão de comprar. O empresário e DJ Marola conta que das lojas que existiam quando ele vinha para São Paulo distribuir os primeiros CDs, 99% passaram a vender roupas ou fecharam. Segundo ele, o mercado fonográfico está do jeito que está também por conta do próprio artista. “Grupos renomados ficaram muito tempo sem lançar discos e os fãs não encontram mais certos produtos. Ainda existe um mercado, pequeno, mas existe. Cada gravadora que surge, independente de qualquer coisa, surge para fortalecer. Tem que ter disco na rua, produtos girando o mercado. Hoje muitos tem condições de comprar, mas não encontram os produtos nas prateleiras”.
Qualificação do rap
Quando resolveu deixar a linha de frente dos negócios e abrir uma gravadora no rap, Jairo tinha a ideia um pouco ilusória do discurso de união que o rap tanto prega, que aos poucos foi sendo derrubada. “Existem escritórios e escritórios. Existem escritórios que acham bom ver a Bagua movimentando, e tem uns escritórios que a Bagua gosta de ver movimentando. Mas existe a guerra fria também, que a gente sabe de escritórios que não acham tão bom. Eu particularmente fico na minha. Não precisa gostar do que a Bagua está fazendo, mas precisa respeitar quem esta trabalhando”.
Mas em uma coisa todos devem concordar: O rap precisa se profissionalizar, se qualificar, alçar voos maiores. “Temos que encarar a realidade. O estúdio é pago, o produtor, a mixagem, a masterização. Quase tudo é dinheiro. Muitos sonham em aparecer em grandes programas e ganhar algum, mas tem vergonha de conquistar um objetivo simplemente para evitar o preconceito por parte do público e/ou amigos. Vários tentam viver do Rap, mas não sabem como ou tem medo fazer dinheiro com ele”, declara Don. Na opinião de Ferréz, “temos talentos individuais e nenhum plano real e eficaz de negócio, todos procuram respostas, mas não sabem as perguntas, gerenciar, organizar, vender show, gerar uma cultura autossuficiente, tudo isso tem que ser construído. Raramente você vê um grupo com escritório próprio, mesmo que seja dentro de casa. No cenário do rock, reggae, ou até músicas locais como o tecnobrega se estruturam com muita rapidez”. A 1daSul lança neste primeiro semestre o novo projeto do Negredo, Bang Africano, produzido por DJ Cia, DJ Dri e Mano Brown, e também um CD literário, chamado Vendo Verdades.
Eliane, da Boogie Naipe, tem uma visão igualmente crítica. Ela acredita que hoje os jovens estão na internet, tudo é mais rápido, eles começam a descobrir as coisas mais cedo e por isso estão mais exigentes. “Não tem mais como o rapper não saber das coisas. Tem que saber muito, mas não pode ser chato. Tem que ler, saber da sua história, de onde veio, o que aconteceu no bairro onde mora. Graças a Deus estou encontrando muitas pessoas que sabem muita coisa no cenário do rap. Jornalistas, escritores, pessoas que trabalham com filme, fotografia etc.”. Sobre a relação da mídia com o rap nacional, Eliane diz não estar tão preparada para dar sua opinião. “Como empresária, penso que devemos preencher todos os espaços, mas como mulher negra da periferia, penso que não é bem assim, não devemos ir de qualquer forma, tem toda uma relação de resistência, ideologia. De saber que o jovem negro não é aceito, não é compreendido, e de pensar em como reivindicar isso na grande mídia. Existem rappers que conseguem fazer isso muito bem”, conclui.
“A gente quer o máximo de gente empregada, profissionais envolvidos, felizes, trabalhando com rap. Conseguir fazer com que contratantes de outros estados, de outros lugares, despertem a atenção para nós. Fazer com que o rap encha as casas com vinte, cinquenta mil pessoas. Mas é preciso trabalhar com amor e desenvolver parcerias para obter resultados. O desafio nosso é progresso para o rap”, ressalta Jairo.
*matéria originalmente publicada na Revista Rap Nacional N°09