De irmão pra irmão: A realidade cantada por quem e para quem a vivencia

Por Gustavo Tristão – Boia Fria Produções

O dia 25 de março de 2012 foi uma data marcante para os jovens da zona norte. O CCJ (Centro Cultural da Juventude ‘Ruth Cardoso’), na Vila Nova Cachoeirinha, foi palco de um encontro que se confundiu com a sua história. Num encontro épico, e ainda inédito naquele lugar, Dexter Oitavo Anjo convidou Mano Brown e GOG para um show em celebração da música, da liberdade e da periferia, num lugar que não poderia ser mais apropriado para a ocasião. Por muito tempo, o terreno onde hoje se encontra o CCJ foi reduto da criminalidade. Dizem que era melhor as pessoas de bem atravessarem a rua ao passar ali diante, já que um lugar com o apelido de ‘esqueletão’ não é flor que se cheire.

Os protagonistas do espetáculo são provas vivas de que a natureza humana é mutável, de que o meio não determina o homem, quem dirá um lugar. Todos os três cresceram à margem da sociedade, e por muitas vezes foram, de alguma maneira, desacreditados pela sua origem, sua cor, seu discurso e seu modo de agir. E muitos que vivem ali na Vila Nova Cachoeirinha, e em outras tantas periferias do Brasil, carregam consigo os mesmo estigmas, os mesmos preconceitos e a indiferença que esses baluartes do rap tiveram de superar para serem ouvidos. Suas mensagens são o alicerce em que se apóia uma legião de jovens entre o sucesso e a lama, carregadas de esperança e permeadas pela sua realidade cotidiana.

Desde o começo da tarde a fila para retirada dos ingressos só crescia, e junto com ela a expectativa para o grande momento em que o palco seria tomado por esses três zicas em alta voltagem. Gente de todas as idades, a maioria jovens, mas seria improvável que um show como aquele não atraísse também pessoas mais velhas. Dada a trajetória artística de Dexter, Brown e GOG, na estrada desde os primórdios da cultura hip hop no Brasil, eles há muito tempo se tornaram clássicos, mesmo com pouca exposição midiática. São clássicos por serem os representantes legítimos dos fundões do mundo, amigos íntimos dos becos e das vielas, que cantam aquela realidade com conhecimento de causa.

Do lado de dentro do CCJ, o clima de expectativa também era grande. O anfitrião, Dexter, como sempre conferia cada detalhe do palco, do som, das luzes, para que a apresentação fosse impecável. Ansioso, ele esperava a chegada dos convidados, tanto os do palco quanto os da platéia, sem os quais a festa não teria sentido. A casa já havia sido arrumada há muito tempo; o ‘esqueletão’ agora é um prédio impecável, que não lembra em nada o seu passado. Mas o simbolismo de sua história é muito representativo para os que viram a transformação do lugar, que descobriram que até no lixão uma flor pode nascer. E era para isso que eles estavam ali.

‘Fênix/Tô di volta (ao vivo no CCJ)

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Chegada a hora de subir ao palco, as luzes vermelhas se acenderam anunciando a aparição do Oitavo Anjo. Era Dexter, a fúria, chegando pro arrebento, recebido calorosamente pelos presentes, tenebroso como um eclipse, um fenômeno que acontece quando três ou mais corpos celestes se alinham em uma mesma reta. No caso, em um mesmo palco.

O Oitavo Anjo colocou o público pra dançar e cantar seus clássicos, como Fênix, Oitavo Anjo, Não Vejo Nada e Salve-se Quem Puder. O CCJ já vinha abaixo antes mesmo de ver o que viria pela frente. Foi quando Dexter chamou um dos parceiros que o acompanhariam no palco aquela noite, um irmão que veio de longe, com um discurso inflamado pela realidade periférica de Brasília, era GOG, o Poeta. Atestando a alcunha que recebeu pelo reconhecimento de seus trabalhos, cantou três músicas muito representativas do universo em que cresceu e em que até hoje vive, o das cidades-satélites brasilienses: É o Crime, ISO 9000 do Gueto e Amor Venceu a Guerra. ‘É bem mais fácil falar da dor/ É bem mais fácil que falar do amor/Dá mais Ibope, chama atenção pros parceiros do mundão, nénão?’.

É sim, mas com certeza é mais fácil ouvir uma música que fala de amor do que aquelas que falam de dor, das coisas que nos incomodam. Foi então que Dexter perguntou ao público ‘O som tá dá hora!?’ e, com a resposta positiva do público, convidou mais um conhecedor da causa para se juntar a ele no palco, o vida loka, embaixador da zona sul, Mano Brown. O eclipse estava perto de se completar.

Atendendo aos pedidos da platéia, os graves soaram forte nas caixas enquanto Dexter entoou ‘Eu sô função’, hit cantando em dueto com Brown, um dos hinos contemporâneos da quebrada. Choviam bombetas, óculos e camisetas jogadas no palco pela platéia, adereços esses que os dois faziam questão de usar, variando seus figurinos, mostrando a humildade, o carinho e o respeito que têm pelos seus fãs. Brown cantou clássicos dos Racionais, como Vida Loka, Jesus Chorou e Eu Sou 157, e, assim como o anfitrião, mostrava disposição e bom humor de quem se sentia em casa. O público estava totalmente entregue, a festa estava completa, mas não havia chegado ao gran finale.

Como quem queria agradecer os presentes com um abraço ou um toque de mão, para delírio do público, Dexter desceu do palco cantando Vida Loka, entrando em contato físico com aqueles que dão sentido à sua caminhada. Logo em seguida, Brown seguiu o gesto do amigo. Fez-se um alvoroço, uma catarse coletiva, uma surpresa mais que merecida àqueles que sempre acompanharam de perto a trajetória dos rappers e que sempre desejaram um contato tão próximo com eles. De volta ao palco, a satisfação era nítida e estampada no rosto dos três que, como costuma dizer Dexter, fizeram “uma grande festa”. Uma senhora festa, cheia de significados, uma lição de que não importa se uma flor é plantada atrás dos muros de uma prisão, na periferia esquecida do extremo sul de São Paulo, nos fundões da capital política do país ou no ‘esqueletão’. Todo terreno é fértil e todo homem é capaz.


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