Consciência Negra: O brilho e as sombras de Malcolm X
Biografia escrita por Manning Marable magnetiza não só por preencher lacunas da trajetória de um dos líderes mais importantes da História, mas também por mostrar as nuances e estruturas de uma nação racista
Por Allan da Rosa
Esta matéria faz parte da edição 127 da revista Fórum. Compre aqui.
A irradiante biografia do grande líder negro Malcolm X, que sai agora no Brasil, mescla o fervo da paixão e as minúcias do raciocínio. O autor, Manning Marable, baila justamente nas lacunas da clássica autobiografia de X, assinada também por Alex Haley, que depois ficaria famoso por sua obra Negras Raízes. Os buracos no clássico livro de Haley foram a motivação para décadas de pesquisas do historiador Marable e seus estudantes, nos vários centros de estudos da diáspora africana que criou ou coordenou. Sua versão biográfica, Malcolm X – Uma vida de reinvenções, mantém o brilho da figura que canalizou o autoreconhecimento e a raiva de milhares de mentes jovens nos EUA, no Brasil e no mundo, rapaziada que viveu o livro de Haley com as veias, arquitetando o futuro, muitos deles banhados também na cultura política hip hop nos últimos 30 ou 40 anos.
O livro magnetiza pelas nuances e estruturas de uma nação racista, pela vida fulgurante de Malcolm e também por encontrarmos uma atmosfera de cumplicidade de luta na escrita, que ao mesmo tempo não o exime de suas posturas infelizes e erros crassos. Ou seja, é reflexão com afeto e senso crítico num livro que tem cara de romance, daqueles que até sabemos o final, mas mergulhamos em sua força e mistério. A profundidade da pesquisa nos detalhes genealógicos e biográficos de Malcolm cruza-se aos contextos de humilhação, de combate e de dignidade conquistada pelos negros dos EUA, enquanto esse país regia conflitos externos e definia destinos no que qualificou como seus quintais pelo mundo.
Com maestria, Marable entrelaça também considerações específicas sobre preceitos muçulmanos, heresias da Nação do Islã e poder religioso. Esmiúça o aparato da mídia oficial e a constituição de práticas policiais e investigativas dos EUA, apresentando também os percalços das independências nacionais e espinhosas questões pós-coloniais no então chamado terceiro mundo, com quem Malcolm X buscou se alinhar nos seus últimos meses de vida após abandonar a nação do islã, num equilibrismo de gênio político, anunciando que a questão negra nos EUA já havia muito superava a alcunha de luta por direitos civis, sendo uma batalha por básicos direitos humanos em tempo de extermínio. Vemos como, reverenciado em vários países africanos, recebido como chefe de Estado em algumas capitais e equilibrando-se entre muitas rivalidades árabes e muçulmanas, Malcolm estabeleceu uma postura que em nada rima com a imagem de demagogo destemperado que vigorou até os anos 1990, orquestrada pela CIA e FBI (que ainda não abrem seus arquivos sobre ele) e também pela mídia oficial, imagem regenerada e consertada com o rapto de sua figura pelo hip-hop, quando ele renasce como líder negro que também atende apelos multiculturais.
Malcolm X em uma conferência nos Estados Unidos, em 1964: uma das muitas das quais ele participou em suas vertiginosas viagens para debater com negros sedentos por guias e com brancos desconfiados da perda de seus privilégios e do que chamavam de ódio racial que vinha com as variadas plataformas negras (Herman Hiller / World Telegram)
Dentre a enorme coerência de seu projeto e trajetória, foram muitas as contradições de Malcolm. As encruzilhadas fulminantes do seu caminho compassado às farpas do povo preto se deram em diferentes contextos de segregação violenta, seja no sul das forcas e linchamentos, no Harlem miserável, organizado e festivo ou em outras capitais, industriais como Detroit ou mais tranquilas como Boston, unificadas num racismo virulento que carimbou marcas na mente e nos corpos de milhões de pessoas. Demonstrando o quanto o conhecimento adquirido nas esquinas, bares e cortiços urbanos o levava a ser reconhecido pela massa pobre e à desconfiança dos moderados, destacando o medo que vogava nos campos do Sul, apresentando os desejos das famílias negras consideradas de classe média e suas pouco melhores condições de estudo, Manning explora melhor a compreensão das diferenças polarizadas entre Martin Luther King e Malcolm X, inclusive trazendo às páginas o único encontro por acaso entre as duas figuras, apesar de um frequentar o discurso e as entrevistas do outro, nem sempre marcados pela cortesia.
No decorrer do livro de Marable, que não conseguimos largar, sentimos cada pontada dos dilemas de Malcolm, o ministro mais famoso e grande orador da Nação do Islã, em meio a urgência dos debates da questão racial nos EUA, passeatas e ações comunitárias trazidas pelos febris movimentos por direitos civis que cobravam definições e ações que o seu então líder religioso Elijah Muhammad não tomaria, interessado em dólares, poder imobiliário, comercial e em arrebanhar fiéis. Manning Marable, em ritmo de romance, traz as muitas desavenças internas e a fidelidade interessada da alta cúpula da seita que escondia os muitos casos de abuso sexual e filhos ilegítimos de Elijah enquanto apostava em uma suposta imparcialidade política que também evitaria problemas com a Justiça federal e manteria mornos os escândalos morais que depois teriam seus segredos arriados. As páginas centrais do livro mostram como essas divergências teológicas e programáticas da seita com as diretrizes do Islã ortodoxo pesaram, dilacerando e ao mesmo tempo fortalecendo Malcolm, até que se tornou impossível para ele continuar na casa obedecendo à ordem de manter a “separação entre espiritualidade e política”, já visado e combatido por outros “irmãos”, e ser jurado de morte.
Essas passagens delicadas, que aconteciam no mesmo momento em que ele se encontrava com Alex Haley para tecer a autobiografia, assim como o que vem depois de sua saída da Nação, inclusive com o fracasso de manter novas organizações funcionando, não poderia surgir no livro assinado pelos dois. Mas Manning Marable, auxiliado por cartas, trechos de programas de rádio, arquivos pessoais de fiéis e depoimentos colhidos décadas após a turbulência dos anos 1960, mostra como foram muitas as berlindas que acuaram Malcolm em sua trajetória crescente dentro da Nação do Islã. Encontros dos líderes da seita inclusive com a linha de frente da Ku Klux Klan, na intenção de frisar o separatismo total, foram duros de aceitar, porém, ainda pesou mais a contínua posição fincada pela seita de manter sua versão singular de surgimento do mundo, de seus profetas iluminados, e não tomar partido ou sequer se pronunciar nas marchas e movimentos políticos perante assassinatos coletivos e debates sobre integração racial de forma contundente, como o espírito de Malcolm exigia.
Insustentável para ele, que atravessava o país em vertiginosas viagens para debater com negros sedentos por guias e com brancos desconfiados da perda de seus privilégios e do que chamavam de ódio racial que vinha com as variadas plataformas negras. Desde a propalada “legítima defesa”, sempre presente nos microfones de Malcolm X, até a incipiência das ideias de ação afirmativa e de exigência por empregos, além do direito de votar, tudo latejava no medo branco e escorria em forma de apoios quase sempre tímidos ou de repressão policial ou mesmo paramilitar.
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